UM POUCO DE FILOSOFIA 2

NIETZSCHE E O SOFRIMENTO
Todos nós temos fases ruins na vida. Todos enfrentamos dificuldades que perecem intransponíveis. Todos passamos por reveses, quando isso acontece, muitas vezes temos vontade de desistir.
A maioria dos filósofos tentou reduzir nosso sofrimento, oferecendo conselhos de como amenizar a dor. Teve um que se debruçou mais seriamente sobre essa questão, Friedrich Nietzsche. Ele acreditava que todos os tipos de sofrimento e fracasso deveriam ser bem-vindos no caminho para o sucesso e vistos como desafios a serem superados, como os alpinistas fazem ao subir uma montanha.
Praticamente sozinho entre os filósofos considerava os infortúnios como algo vantajoso na vida. Ele escreveu: “A todos com quem realmente me importo, desejo sofrimento, desolação, doença, maus-tratos, indignidades, o profundo desprezo por si, a tortura da falta de autoconfiança e a desgraça dos derrotados.”. Para compreender o que Nietzsche quis dizer, vala a pena escalar sua montanha preferida, nos Alpes suíços.
Nietzsche entendia de esforço, tanto físico quanto mental. Sua vida foi muito difícil. Ele viveu em permanente luta contra doenças: vertigens, dores de cabeça, enjôos, provavelmente em decorrência da sífilis que contraiu jovem, num bordel em Colônia. Era obrigado a estar sempre se mudando, em busca de um local cujo clima não agravasse seu estado. O lugar onde se sentia melhor era Sils Maria, no alto das montanhas no sudeste da Suíça. Ele esteve lá pela primeira vez em junho de 1879 e apaixonou-se pelo lugar. “Tenho o melhor da Europa, com seu ar soberbo”, escreveu. “Sua natureza combina com a minha.” Ele passou oito verões em Sils Maria, em um quarto alugado por um fazendeiro. Lá ele trabalhou em algumas de suas maiores obras como: Assim falava Zaratrustra, Além do Bem e do Mal e Crepúsculos dos Ídolos. Mas seus livros não fizeram sucesso enquanto ele estava vivo, embora tenha recebido o título de professor universitário aos 24 anos. Seu pensamento destoava dos demais colegas. Ele se viu obrigado a se aposentar aos 35 anos. Pelo resto da vida viveu com pouco dinheiro e os muitos livros que escreveu foram ignorados.
Ele tinha uma rotina definida: acordava às 5h da manhã, escrevia até o meio-dia e saia para caminhadas nas montanhas ao redor do lugarejo. Nietzsche não foi viver nas montanhas só por causa do ar puro e das belas paisagens. O cenário que o rodeava espelhava suas idéias sobre si e seu trabalho. A “filosofia é o exílio voluntário entre montanhas geladas”.
A vida amorosa de Nietzsche foi igualmente desastrosa. Todas as suas tentativas de seduzir mulheres foram em vão. Muitas se assustaram com seu volumoso bigode. Diversas vezes ele confessou sofrer com a solidão. Escreveu a um amigo casado: “Graças a sua esposa, as coisas são 100 vezes melhores para você do que para mim”. Vocês têm seu ninho juntos. “Eu tenho, se tanto, um caderno”.
Nietzsche resolveu mergulhar na filosofia, mas sua vida produtiva foi abreviada cruelmente. Terminou seus dias na loucura, depois do famoso colapso nervoso em que abraçou um cavalo em Turim, no ano de 1889. Ele voltou à pensão onde morava, dançou nu, pensou em fuzilar o Kaiser e declarou ser, entre outro, Jesus, Napoleão, Buda, o rei do Piemonte, Alexandre, O Grande. Foi posto num trem de volta à Alemanha e confinado num sanatório, onde, sob os cuidados da irmã e da mãe, permaneceu onze anos, até sua morte aos 56 anos.
Uma lição que a vida difícil ensinou a Nietzsche foi que toda conquista é fruto de luta e esforço constantes, embora imaginemos o sucesso como fácil e natural para algumas pessoas. Na visão de Nietzsche, não existe estrada reta até o topo. “Não falemos de dons ou talentos inatos”, escreveu. “Podemos listar muitas figuras importantes que não tinham talentos, mas conquistaram seu mérito e transformara-se em gênios. Elas fizeram isso superando dificuldades.”
Nietzsche dizia que, sem dor, sem enfrentar a dor, ninguém consegue nada. Para conseguir as coisas que valem à pena, é preciso sofrer. A essência da filosofia dele é uma idéia muito simples: dificuldades são normais. Não devemos entrar em pânico nem desistir de tudo. Nossa dor vem da distância entre aquilo que somos e o que idealizamos ser. Por não dominarmos a receita da felicidade, nós acabamos sofrendo. Mas ele achava que não bastava sofrer. Se o único requisito para se sentir realizado fossem as dificuldades, todos seríamos felizes. O segredo está em saber reagir bem ao sofrimento, ou, quem sabe, usá-lo para criar coisas belas.
Nietzsche tinha boas sugestões para isso. Ele foi um dos poucos filósofos a destacar o lado bom, das dificuldades e do fracasso. Ele achava que todos nós podíamos nos beneficiar deles. Ele dizia que o fracasso é um tabu em nossa cultura, tratado como se fosse uma coisa que só acontecesse a alguns coitados, mas ninguém fala a respeito.
E, do outro lado, há o sucesso. Os dois são coisas distintas. O interessante é a idéia de que na vida de qualquer um, mesmo sendo uma boa via, sempre haverá um grau de fracasso. Pode não ser muito, mas sempre haverá. Para Nietzsche o fracasso não bastava. Todas as vidas têm um grau de fracasso. O que tornam algumas mais satisfatórias é a forma como o filósofo é encarado.
Um dado que surpreende na biografia de Nietzsche é a vontade que ele sentiu de abandonar a vida acadêmica para se dedicar a profissão de jardineiro. Esse plano nunca se realizou, mas lidar com plantas ensinou-lhe uma lição: “Diante de problemas, devemos nos espelhar nos jardineiros. Eles deparam-se com plantas que tem raízes feias. Pois eles são capazes de cultivar algo que parece feio a princípio, até extrair a beleza que há nele. Para ele, essa é uma metáfora de como devemos agir na vida. Pegar situações que nos parecem horríveis e fazer nascer algo de belo delas.
Há algo animado na comparação botânica feita por Nietzsche. Mesmo nossos sentimentos mais vis e negativos podem dar belos frutos se bem cultivados. Isso só depende de nós mesmos. A inveja, por exemplo, pode gerar só amargura, mas se conduzido do jeito certo, pode nos estimular a disputar com um rival e produzir algo maravilhoso. A ansiedade pode nos deixar em pânico, mas também pode nos levar a uma análise do que está errado, gerando, assim, paz de espírito. Era por isso que Nietsche desejava o infortúnio a seus amigos, por acreditar que as dificuldades eram um mal necessário e que, se cultivados com aptidão necessária, podiam levar a criação de coisas belas.
Se Nietzsche dedicou-se a pensar nas melhores reações aos problemas, ele também refletiu sobre quais seriam as mais desastrosas e concluiu que das piores era afogar as mágoas. Um dos traços mais marcantes de Nietzsche era seu horror ao álcool. Era mais uma questão de gosto pessoal. Ele dizia que qualquer pessoa que quisesse ser feliz não deveria chegar perto de bebidas alcoólicas. Ele dizia: “os espíritos mais elevados devem se abster da bebida. A água basta.” Imaginar que é bom escapar dos problemas tomando 1 ou 2 drinques de vez em quando é ter uma visão equivocada da análise nietzschiana da relação entre o sofrimento e felicidade. A felicidade não vem da fuga dos problemas, e sim do ato de cultivá-los para extrair algo positivo deles. A última coisa que Nietzsche recomendaria seria afogar as mágoas. Nossas preocupações são pistas valiosas do que está errado com a nossa vida e podemos apontar o caminho para torná-la melhor.
Nietzsche nasceu na pequena Rocken, na ex-Alemanha Oriental. Seu pai era o pastor local. A mãe extremamente devota, também era filha de pastor. O filósofo adorava o pai, e deve ter ficado em choque quando o perdeu repentinamente com apenas quatro anos. Essa perda o atormentava pela vida toda. Uma das primeiras coisas que fez quando juntou algum dinheiro, ao vencer um processo judicial contra um editor, foi comprar uma grande lápide que até hoje vemos no túmulo de seu pai. Nela, ele mandou inscrever uma frase do Novo Testamento: “Die Liebe höret nimmer auf”, “O Amor nunca morre”, uma tradicional mensagem natalina.
Mesmo tendo amado profundamente o pai e mesmo estando sepultado num cemitério cristão ao lado dele, Nietzsche via com reservas o tipo de ajuda que o cristianismo oferece em tempo de dificuldades.
É revelador visitar a casa onde Nietzsche nasceu, à sombra da igreja luterana, onde seu pai era páraco. O local está povoado em detalhes. Ele escreveu em uma atmosfera religiosa. Assim é surpreendente ler o que ele escreveu já adulto, sobre a religião de seus pais. “É justo que se leia o Novo Testamento com reservas. Em todo o texto, há uma única figura que inspira respeito, Pilatos, o governador romano. Simplificando, é indecente ser cristão hoje em dia.” Ele era contra o cristianismo pelo mesmo motivo que condenava o álcool. Ir a um culto na igreja pode fazer você se sentir melhor rapidamente, da mesma forma que se embebedar pode fazer isso. Para ele a fé cristã pode amortizar a dor, amortizando também a energia que ela nos dá para superar os problemas e chegar à verdadeira felicidade.
Há diferenças inegáveis entre a igreja e o bar. Mas, para Nietzsche o tipo de consolo oferecido nos dois locais é o mesmo. Ele acredita que o Novo Testamento tenta nos animar dizendo que muitas coisas que vemos como problema na verdade não são problemas, mas qualidades. Para quem é acanhado demais, está escrito: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a Terra”. Para os que sofrem por não ter amigos: “Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem”. E para aqueles que sofrem com a falta de dinheiro e que invejam aqueles que o têm, lá está o consolo: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”.
Para Nietzsche essas palavras eram catastróficas como o álcool, o aconselhamento cristão pode aliviar a dor, mas também leva a energia para superar o problema que o gerou. Então, como Nietzsche gostaria que os cristãos se comportassem as se deparar com as dificuldades? Ele queria que deixassem de fingir não desejar as coisas mais difíceis. Ele enfrentou dificuldades imensas. Ele foi pobre, doente e solitário. Mas nunca teve a atitude que acusava os cristãos de terem, ou seja, ele nunca afirmou que a saúde, riqueza e amor eram coisas ruins. Aceitava o fato de não ter essas coisas, em parte por escolha própria, em parte graças às circunstâncias, mas jamais negou seus desejos, nem sua dor. Assim, talvez não seja surpreendente encontrar nos registros funerários do vilarejo de Röcken, a inscrição deixada pelos páracos, ao lado de seu nome, dizendo “O Anticristo”.
Embora tenha tido uma vida difícil, não devemos achar que ele viveu se lamentando o tempo todo. Muitas vezes ele falava de satisfação, sobretudo quando estava nas montanhas. Mas por satisfação, ele queria dizer algo mais abrangente do que a sensação de bem-estar que talvez possamos imaginar. Chegou a escrever sarcasticamente sobre pessoas que ele considerava “viciada na religião do conforto”. Ele chamava essas pessoas de “pequenas, mesquinhas que se escondem na floresta como cervos amedrontados”. Mas aqueles que se aventurarem a sair para a clareira poderão apreciar a vista e respirar a brisa. Só então compreenderão a vantagem de abandonar o conforto em busca da verdadeira realização, como dia a famosa frase de Nietsche “Aquilo que não me mata só me fortalece”.
Como todos os filósofos, o interesse de Nietzsche era que as pessoas fossem felizes, mas diferentemente de todos os outros, ele acreditava que os extremos da dor eram um componente vital para chegar a felicidade que tinha em mente. Nem tudo aquilo que nos faz sofrer é necessariamente ruim, assim com nem tudo que nos dá prazer necessariamente nos faz bem. “Considerar o sofrimento como algo mau a ser abolido, é o acúmulo da idiotice.”

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